IARA WIEHE – IEPP
A psicanálise entende que a etiologia da construção do EU é altamente complexa. A definição dos termos fratria, fraterno e fraternidade mostra a íntima relação entre si no que tange à edificação da identidade do sujeito.
Fratria (phratría) segundo Dicionário Aurélio (2010), significa conjunto de irmãos, confraria ou outro agrupamento. Benghozi e Feres-Carneiro (2001) entendem a fratria numa perspectiva psicanalítica de laço (ou vínculo), isto é, todos os laços psíquicos de filiação, laço real, consangüíneo, ou de afiliação, que abrange qualquer vínculo de pertencimento a um grupo, comunidade ou instituição.
Berenstein, I. (2009) define o laço fraterno como uma conexão estável entre duas ou mais pessoas que lhes permite ser e fazer diferente do que se estivessem sozinhas ou se relacionando com outro sujeito.
Conforme o Dicionário Aurélio (2010), o adjetivo fraterno significa: de ou próprio de irmão, fraternal, como de irmãos; afetuoso; íntimo. E fraternidade, segundo o mesmo dicionário, se refere ao parentesco entre irmãos ou relação de união como a que existe entre irmãos, afeto, amor ou carinho entre irmãos, comungar das mesmas idéias, harmonia, concórdia, convivência amigável entre pessoas, comunidades.
Historicamente, apesar da importância das relações fraternas, constata-se que a psicanálise passou a valorizá-las apenas a partir dos anos 2000. A definição de “Complexo fraterno”, segundo Kaës (2005), diz respeito a uma organização psíquica inconsciente: “O complexo fraterno define uma organização fundamental de desejos amorosos, narcísicos e objetais, do ódio e da agressividade em relação a este outro que o sujeito reconhece como irmão ou irmã.”(p 141)
Alguns destes fatores estão presentes nas relações parento-filiais e têm conseqüências nas relações entre irmãos e, extensivamente, nas relações extra-familiares, isto é, sociais.
A mitologia e a literatura atestam o papel substantivo da ordem do nascimento dos filhos. A psicanálise também destaca que a posição do filho dentro da série de filhos é relevante para a conformação de sua vida ulterior. Freud (1920) sublinhou o valor que a rivalidade fraterna exerce na determinação da escolha do objeto sexual e no âmbito da eleição vocacional.
Kancyper, L. (2004) igualmente salienta a importância da ordem de nascimento de cada filho e entende que esta pode despertar diferentes identificações inconscientes entre cada genitor e cada descendente, especificamente, podendo o primeiro depositar na geração do segundo histórias não processadas, isto é, traumáticas. Afirma que, com freqüência, observam-se diferentes expectativas em relação aos filhos e que estes podem ou não corresponder aos pais. Ressalta que isso pode provocar a exclusão e gerar uma desarticulação na regulação libidinal do casal.
Além disso, os filhos anunciam o envelhecimento e proximidade da morte dos pais, o que pode gerar maior ambivalência por parte destes e resultar em defesas ou vínculos patológicos onde não reconhecem os filhos como alguém que tem direito à vida psíquica própria. Essa situação pode gerar um padrão de relacionamentos sadomasoquistas, que tende a se reproduzir no intrapsíquico (constituinte da identidade), no intrafamiliar (transgeracional) e, extensivamente, nas relações sociais, como na escola, no trabalho, ou nas instituições que essas pessoas pertencem.
Entende que essas situações fraternas traumáticas, transgeracionais, são compulsivamente repetidas na relação com os filhos e destes entre si, com a intenção de serem denunciadas e reconhecidas para que haja a possibilidade de elaboração.
Em termos de psicopatologia, a discrepância entre ser um filho real e não o filho idealizado pelos pais, além de gerar os já citados ressentimento e luto parental, tem sérias conseqüências para a prole.
Kancyper, L.(2004) enfatiza que o “topos” (o lugar) que cada filho ocupa interfere diretamente na formação do caráter, na neurose e, especialmente, na gênese e dinamismo dos processos identificatórios e sublimatórios de cada um e entre os irmãos. Kancyper,L. (1991,1995) sustenta que diferenças entre o primogênito e os irmãos subseqüentes geram, inevitavelmente, recíprocas e acirradas rivalidades e protestos, que somente a análise exaustiva destes detalhes poderá fazer com que a ordem de nascimento não desempenhe psiquicamente uma inexorável marca do destino do sujeito e de seus descendentes.
Goldsmid,R. Féres-Carneiro,T. (2007), menos radicais, propõem pensar que a posição que um filho ocupa na fratria não deve ser considerada em seu valor absoluto como responsável por seu desenvolvimento. Enfatizam que outros fatores podem interferir no processo da formação do Eu, como por exemplo, as expectativas inconscientes parentais em relação ao filho, a forma como este as decodificará, o modo como receberá e transformará a herança psíquica, e, a importância de outras pessoas em seu processo identificatório, tais como avós, tios e outros.
Birman, J. (2003) entende que antes de interpretarmos os laços fraternos devemos fazer uma consideração crítica sobre os destinos da paternidade na subjetividade moderna. Analogamente ao mito da horda primitiva, a sociedade moderna foi fundada em laços fraternos, a partir da queda do poder da soberania absolutista, quando passou para a soberania do povo ou de seus representantes. Conclui que o psiquismo do sujeito contemporâneo desamparado, foi então buscar uma proteção idealizada num “pai ideal” e num “supereu”, sesujeitando à masoquista posição submetida e servil observadas, por exemplo, na sujeição aos governos totalitaristas.
Kehl, M. (2008) também equivale às relações parento-filiais a relação estabelecida entre o Brasil (pátria) e seus cidadãos, e vice-versa. Afirma que o fato de sermos descendentes de degradados europeus, herdeiros de quem não prezamos e dos que não prezaram a lei. Portanto, sentimo-nos cidadãos órfãos. Não ter a função paterna simbólica pode ter produzido uma demanda social por pais abusados, arbitrários e brutais. E, em decorrência disso, “…a sociedade brasileira confunde, com freqüência, o autoritarismo e/ou o arbítrio com o exercício. Em consonância com Birman, J. (2003) afirma que a atualidade exige a constituição de novas modalidades de laço fraterno, no plano individual e coletivo. Propõe, dentre os diversos recursos psíquicos que constituem a subjetivação, a fraternidade como uma das modalidades de defesa contra a condição de desamparo, onde a solidariedade e a amizade poderiam ser os eixos para a reconstituição dos laços sociais.