Henrique J. Rosa Pereira – Psicólogo Psicoterapeuta formado pela Unisinos. Sócio aspirante do IEPP – POA.
A evolução da psicologia como ciência e profissão é constante. Concomitante ao seu avanço, assim como presente na análise e psicoterapia, há movimentos reativos frente esse curso normal de aprofundamento, que se demonstram por posturas ancoradas em conservadorismo, marginalização ou simplesmente patologização. Diferente do processo terapêutico ou analítico que é de conotação inconsciente, o preconceito se constrói de forma primariamente consciente, edificado daquilo que trazemos como background familiar e de outros sistemas relacionais que nos tangenciam. Os preconceitos e seus desdobres podem ter uma face inconsciente frente as inscrições da transgeracionalidade, entretanto sua construção maior é da relação cultural, com o Outro. Não esqueçamos que recentemente tivemos uma chapa para o conselho federal cujos integrantes defendiam a famigerada “cura gay” ou mesmo que fomos um dos últimos países a aderir a abolição da escravatura. Parece haver um saudosismo pueril no conservadorismo que despotencializa outros modos de viver, existir. Nossa profissão tem a liberdade e a verdade como conditio sine qua non para existência. Ao não podermos abordar o não-dito ou questionar processos institucionalizados, se instala um cerceamento (ou censura) naqueles movimentos de (re)existência possíveis.
Tais condições me levaram a pensar na dimensão sociopolítica da vida e evocar um texto lido há uns anos. O nome era algo do tipo “Faça o teste do pescoço” e chamava o leitor a fazer um exercício de, no alto de seu privilégio, perceber em quais posições estavam as pessoas negras nos ambientes em que perpassa. O que se entende aqui como privilégio é justamente o acesso a direitos básicos de forma facilitada, como o acesso à universidade para pessoas brancas, por exemplo, devido à desigualdade promovida pelo racismo estrutural do país. Lembro que desde que li tal texto, na época cursava a faculdade de Psicologia, comecei a fazer o teste do pescoço principalmente nestes ambientes. Infelizmente o resultado sempre me causou desconforto. Conseguia contar numa mão a quantidade de colegas negros que tive, de professores ao longo da vida, especialmente na universidade. Durante a graduação não tenho lembrança se tive algum professor ou professora negra(o). O número de pessoas negras nos lugares que frequentava, e que se equivalia ao mesmo posto que eu ocupava, era diminuto, atravessados pelo não-acesso da população negra a esses lugares. Por outro lado, em sua grande maioria, ocupavam posições de trabalhos de menor remuneração, como auxiliares de limpeza, caixas operadores, motoristas e seguranças. Através das cotas raciais, hoje o número de negros na universidade tem aumentado. Embora já tenham maior representatividade acadêmica, ainda há de se pensar não só nesse contexto, mas no número de pessoas negras encarceradas, o número de jovens negros assassinados todos dias, o número de casos de racismo nas redes sociais e na mídia. Não são só números, não é só estatística ou coincidência. É uma relação há muito tempo estabelecida.
Quando se aborda o racismo, existem alguns pontos importantes que nos transversalizam enquanto profissionais, no que tange a uma maior compreensão para identificação com os afetos emergidos por algo tão vil como a discriminação pela cor da pele. A linguagem se marca como algo intrínseco à vida e é uma das principais formas interação comunicacional. Assim, é dever prestar atenção em como alguns termos tem conotação racista e vexatória. Um rápido exemplo é a palavra “denegrir”. Sinônimo de difamar, possui na sua raiz o significado de “tornar negro”, no sentido de algo maldoso e ofensivo, “manchando” uma reputação antes “limpa” (branca?). Não vou citar todas as palavras de cunho racista, mas incito a procura das mesmas. Ter maior entendimento de que existe uma dimensão preconceituosa arraigada e estrutural na maneira em como nos comunicamos, nos tira do papel de simples reprodutores dessas inscrições e faz com que possamos ser ativos também para movimentar uma construção-outra de comunicar, ouvir e afetar-se. No campo clínico, usar tais termos pode produzir iatrogenia, uma percepção de não acolhimento, de falta de empatia ou de não conseguir se conectar com o sofrimento do outro.
Penso que a neutralidade da psicanálise frente a recepção de novos saberes e compreensões de mundo deve se manter somente quanto aos parâmetros técnicos. Em relação à demanda externa, deve se debruçar a esses assuntos de maneira receptiva e fomentando que se possam abrir espaços de estudo e discussões (incluindo pessoas negras em seu lugar de fala) para aprofundamento teórico, técnico, de reconhecimento de privilégios e, também, para refletir a quem a psicanálise tem servido ao longo de seu surgimento. Não há instituições ou sujeitos que ficam incólumes às movimentações sociais e de Zeitgeist.
Outro dia ouvi de uma profissional da área que “A parada do Orgulho Gay é uma formação reativa”. Também já li muitas vezes que o “racismo não existe, é vitimismo”. Ambas falas reduzem a vivência da discriminação a um recorte individual, descontextualizado das mazelas sociais e transbordado de obscurantismo. Além de negar o imperativo cristão moralizante acerca da sexualidade e da forma como nosso país foi se constituiu tendo como base o racismo estrutural e a escravidão. Em tempos de fake news e pós-verdade, a história deve ser lembrada para não ser repetida.
É deveras atual um certo desdém quando se abordam assuntos como racismo, transfobia, homofobia, xenofobia, feminicídio e direitos humanos como se fossem pautas político-partidárias e que cerceiam uma dita “liberdade de expressão”. “Estamos ficando chatos!”, dizem. Existe uma citação atribuída a Voltaire (e contestada por outros que não seria dele) que diz “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo.” Eu acrescentaria “Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo desde que não seja discurso de ódio.” Discurso de ódio, segundo o Ministério Público Federal, é qualquer ato de comunicação que inferiorize ou discrimine uma pessoa com base na discriminação de características como raça, etnia, nacionalidade, religião, orientação sexual ou de qualquer outro aspecto.
Seria inocente ou negacionista afirmar que estamos em um momento de maior tolerância, percebendo polarizações diversas a nível internacional. Apesar disso, nos soa absurdo que alguma discriminação passe despercebida sem ser problematizada, exposta, ou pelo menos produzindo um estranhamento. Possivelmente, por isso hoje há tantas discussões acerca dos “limites do humor”. O humor grotesco, discriminatório e estereotipado não cabe atualmente. Estamos ficando “chatos” ou fazendo o exercício de uma consciência de alteridade mais alargada?
Por fim, coloco minha sensação de certo desconforto na escrita desse texto. Primeiramente por ter que pontuar o óbvio em relação a discriminação racial, mas também por parcialmente estar ocupando um lugar de fala que não é meu, como homem branco. Do mesmo modo, como já pontuado, precisamos relembrar a história para não a repetir. Isso inclui falar o obvio. Essa sensação também se manifesta frente às instituições psicanalíticas e minha percepção de onde (não)se encontram os negros nesses espaços. Nesse sentido, posso falar somente de um recorte a nível regional e pessoal.