Não importa a nomenclatura, o “não” é, sem dúvida, o constitutivo não só do sujeito, mas também é o ponto central de todos os autores psicanalíticos. São décadas diferentes, continentes diferentes, momentos, culturas, espaços. O “não” é um elo de ligação. É inegável: o “não” estrutura. O “não” estabelece, sintetiza, cria o sujeito. Inaugura seu “vir a ser”. Mas que “não” é esse? É o não da falta.
Nos dias de hoje vivemos uma espécie de crise da palavra “não”. Não podemos dizer “não” às novas gerações. Ele virou um sinônimo de culpa, de desinvestimento. Não podemos repreender, não podemos frustrar, limitar, advertir, negar, privar. Devemos criar formas de dizer “não” para os filhos sem ter que dizê-lo. Já escutamos, inclusive, alguns dizendo que o “não” é um tipo de comunicação violenta. É inegável que um dos traços mais marcantes da nossa contemporaneidade é a negação da privação. Privação é a palavra inimiga, errônea, corrompedora, aquela que não deve ser nomeada. Para o limite, criamos o crédito! Não precisamos ter mais dinheiro (se quisermos falar da parte concreta). Essa sensação de podermos adquirir o que quisermos, ter prazer a qualquer momento, apoia-se numa lógica que desperta um ideal de viver que só ocasiona nos “desejos vazios”. Vazios pois pouco construídos simbolicamente. Vazios, também, porque operam uma lógica social que muito mais se faz importante para questões econômicas do que o bem-estar direto dos sujeitos que a operam em suas vidas. É como se nos dissessem: podes ter teus limites, porém mereces o negar esse desprazer a qualquer custo… A este movimento da nossa cultura – que rege o limite como o inimigo do desenvolvimento- digamos não. E é esse o “não” que me refiro e convido o leitor à essa pequena reflexão psicanalítica.
Freud evoca a lei da Castração: Eu não posso tudo, eu não devo poder fazer tudo. E o mais importante: no fundo, nem sei o que fazer com esse “tudo”. Sobreviveria a isto? Para ele, a descarga das pulsões é um desejo. Mas a partir de uma construção simbólica complexa, profunda e rica, o ego descobre outros meios para essa descarga. Que riqueza teria, para a constituição de um ego, senão através dessa trajetória subjetiva, simbólica que a castração inaugura? O que nos sobraria de humanos nisso?
Lacan então diz: o falo é o significante de uma falta. Sem experimentar a falta do falo, a mãe não deseja seu bebê como ideal. Se não deseja o bebê como sua completude, o bebê não pode viver a fantasia de ego ideal. A falta da mãe preenche o bebê. E depois a falta, para o bebê, instaura a dependência na mãe. Mas também a mãe boa falha. Falta. Agora nos encontramos em Winnicott. A mãe elege o “não” como uma possibilidade na vida de seu bebê. Ela diz: ainda sou eu, embora que esteja aqui para você. Te amo, mas falho e te permito sentir minha falta. Esta falta cria espaço para que tu surjas para ti mesmo. A partir dessa “fome”, permito que, um dia, vires teu próprio “cozinheiro”. Pois meu desejo também é, na melhor das hipóteses, que desejes experimentar a fome. Que desejes, um dia, vir a ser no mundo. Descobrir novas fomes nesse mundo. Que a própria falta (o não) te alimente. O faça criar, explorar o mundo, desejar o desconhecido e o inalcançável (aquele ideal…). Que sejas um ser desejante, imaginativo e criativo.
Não posso tudo, não quero poder tudo.
Agora nos encontramos com Bion: a fustração inaugura o ego. A frustração inaugura o pensamento. Mais do que isso: o pensar é a ferramenta criada para lidar com essa frustração que para o bebê só terá sentido através dessa experiência frustrante -de não. Falo aqui de um não que não está tanto na palavra, mas sim esse não limitador e constitutivo. É o não-falta.
Não deixemos de falar de Klein: medo do “não” do amor da mãe sintetiza o desejo de reparação. Evidentemente, o “não” é a causa da inveja, como ela nos diria. Quero destruir aquele que tem o que não tenho. A minha falta. Crueldade? Não: vida. Meu desejo de destruir me permitirá desejar pedir perdão. Novamente, a falta do que não tenho, a falta que me imagino tendo caso não repare minhas agressões aos meus objetos tão amados. Falta. Não.
Não podemos esquecer de outro detalhe: se reconheço minhas faltas, falhas, limitações, privações internas e externas, os “nãos” que acompanham a minha existência, me reconheço como real. Paz de espírito. Ter meus nãos sem culpa. Não preciso dar conta de tudo, não preciso saber, fazer, ter tudo. Não preciso. Não seria esse o verdadeiro empoderamento? Quantas vezes, com pacientes das mais diversas idades e mundos internos, nós psicólogas e psicólogos não nos deparamos como nesse papel? De mostrar as nuances das próprias limitações. Acredito que essa é a marca mais forte da nossa missão nessa geração do sim: apresentar o não a crianças, adultos, pais, seja o público que for. E ao contrário do que a nossa cultura do sim aponta, podemos sim ainda ser felizes sem o crédito, sem a culpa, sem a crença em chegar ao ideal ( Ego ideal, aquele perdido…)… Ser felizes com o “não”.
Eu digo não para a onda do “sim”. Eu digo não a evitar o próprio não. Eu digo não para uma sociedade em que a frustração seja combatida. O prazer sem falta não é mais prazer. Ganhar tudo, também pode significar ter nada. O prazer ininterrupto é uma falta irreparável. É a falta da falta- que é falta! Não é só limitar. A “inimiga” privação me protege. Me protege de um mundo que convida, a tempo todo, a buscar uma coisa que não está, aí, para ser alcançada: o ego ideal, aquele que deve ser perdido…
Marina Brasil, Psicóloga, Mestre e Doutoranda em psicologia (PUCRS), Sócia Aspirante do IEPP