Somos iniciantes na vivência de confinamento devido a uma pandemia, mas muito treinados em confinar nossos pensamentos em crenças limitantes e repetitivas em relação a tudo no
mundo. Presumo que uma das grandes vantagens de um longo isolamento social é que podemos nos conectar mais com a nossa parte interna, mesmo que em um primeiro momento possam emergir grandes angústias – que são essenciais para elaborar o luto da perda. A fuga se abrevia em um confinamento, talvez não se consiga correr para um lugar seguro, porque a segurança está entre paredes. Fazer cursos, exercícios físicos, meditar ou aprender uma nova língua? Acho todas essas alternativas são muito válidas para tornar o tempo de ócio mais produtivo. Mas me refiro a se movimentar em outro local: o pensamento. Onde há capacidade de se questionar, refletir, elaborar, seja o que for, é preciso colocar a mente para a funcionar no sentido à frente.
O efeito de um vírus letal que se espalha mundialmente pode nos ensinar muito sobre quem somos e em que estamos falhando enquanto sociedade. Falta água, saneamento básico e comida em diversos lugares do nosso país, onde grande parte da população não possui condições básicas para lidar com o Covid-19; o investimento no sistema de saúde e na ciência é de longe uma prioridade governamental; nossos hábitos e nossa relação com o meio ambiente se voltou contra nós de uma maneira violenta, assim como nós temos sido. Quem é o inimigo? São faltas gritantes que naturalmente o planeta precisa expressar como um sintoma, isso demanda veemente ser reconhecido e trabalhado. Falamos tanto em saúde mental do indivíduo, então é primordal também falarmos sobre esse psiquismo social que ainda se comporta primitivamente.
Não é justo e ético que algumas pessoas possam estar em confinamento no conforto de seu lar, e outras saiam de suas casas pois precisam garantir a comida do dia, ou ainda, não saiam de casa porque não possuem uma para se protegerem, expondo-se de forma cruel à contaminação nas ruas. Enquanto isso é importante lembrar que, segundo a revista Forbes, cinco bilionários possuem juntos o total de riqueza de metade da população pobre brasileira. O que falta acontecer para que possamos enxergar as desigualdades e aceitar que falhamos? De que adiantou erguermos muros em fronteiras territoriais se o que nos ameaça agora atravessa os limites impostos pela nossa mente? Incessantemente buscamos significados e respostas frente às repetições sintomáticas que o planeta tem comunicado. Só que agora estamos em um mundo que já não é mais o de antes e que suplica por transformações rápidas, ou corremos o risco de cair nos mesmos erros no futuro. Por que repetimos o que é óbvio? A boa notícia é que uma crise passa e com ela podemos aproveitar o que há de mais positivo nas frustrações: aprender com a experiência das incertezas e do que dói – a falta, a distância, o luto. Lidar com os nossos vazios equivale a enfrentar nossas defesas, seja adotando posturas menos negacionistas, deparando-se com a vulnerabilidade da realidade e entendendo que o predomínio do princípio do prazer de cada indivíduo está excedendo nossos recursos naturais (e psíquicos), ou criar realidades paralelas que sustentam a alienação e esquivar-se de nossas responsabilidades enquanto seres sociais.
Por sorte, confinados em nossas casas podemos nos mover com a nossa capacidade de pensamento, pressionar as instituições, cobrar as autoridades, valorizar o científico, transformar nossa existência e perceber que o coletivo precisa ser olhado e cuidado. Esse movimento dá voz a si mesmo e ao outro, constrói posicionamentos e novos olhares diante do que está por vir. Nós não somos só nós, temos o outro internalizado também e por isso, por mais distantes que estejamos, não estamos sozinhos. E não só nesse momento, mas principalmente agora de imediato, nossos idosos e pessoas com a saúde frágil precisam de compaixão e responsabilidade coletiva. Precisam-se de doações e solidariedade para quem tem fome. Precisam-se de mentes pensantes e vozes. Não deixemos que o egoísmo humano seja mais letal do que um coronavírus. Quem sabe ultrapassar nossas barreiras internas e se puder ficar em casa?
Nicolle Codorniz
Psicóloga e Sócia-Aspirante do IEPP