Ana Lúcia M. Guaragna Borges, psicóloga, sócia graduada do IEPP,
mestranda em Psicanálise, Clínica e Cultura (UFRGS)
Desde que começamos a habitar mais nossas casas por conta da pandemia, passamos a perceber dentre tantas coisas, algumas nuanças que o ritmo do cotidiano muitas vezes nos impossibilita. Dentre diversas mudanças e sentimentos que estamos vivenciando, gostaria de contemplar os barulhos da cidade. Os sons da cidade me parecem diferentes, surge uma nova sinfonia de Porto Alegre em meio à pandemia. Italo Calvino em seu célebre livro As cidades invisíveis relaciona a cidade com os sonhos, pois são construídas por desejos e medos, mesmo que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e todas as coisas escondam uma outra coisa. Sendo assim, a cidade se revela como algo móvel, onde para além do visível há outra cidade, ou outras cidades, como por exemplo: a cidade que canta, que grita, que emudece, com seus medos e desejos, uma cidade que pulsa.
Os barulhos de antes assumem outros tons. Na vizinhança pode-se escutar as panelas, também os panelaços, a quantidade de pessoas que habitam uma rua, as televisões até mais tarde e os silêncios prolongados pelas manhãs. Apesar de tantos movimentos sonoros, são os silêncios de domingo que me chamam a atenção. Domingo tem a característica de ser considerado por muitos um dia de descanso, de dormir até mais tarde, portanto um dia, ou noite mais silenciosa. Mas mesmo esse silêncio de domingo pode ter assumido uma nova roupagem, inclusive já escutei que no início da pandemia todos os dias pareciam domingo, de que maneira?
Lacan ao revisitar as considerações freudianas acerca do conceito de trauma em psicanálise, refere que o acidente traumático do confronto com a morte ocorre cedo demais para ser compreendido pela consciência, havendo um hiato entre a percepção e a representação. É precisamente nesse hiato que se pode produzir poesia e outros recursos como possibilidade de circunscrição do traumático. Neste contexto atual no qual estamos vivendo, quem sabe o novo silêncio de domingo possa ser o indício de um hiato, entre a percepção e a representação. Um silêncio de pandemia, um dia em que a cidade que pulsa faz seu “minuto de silêncio” para zelar os mortos, as perdas.
É preciso zelar os mortos, as perdas, nos mais diversos sentidos, para que emerja o desejo em meio ao trauma. É preciso vislumbrar algo do desejo para além da extrema necessidade, o que é valioso em qualquer situação traumática. Mas essa saída não se faz sem o encontro com o real. Desejo que dos silêncios de domingo, possam surgir algumas poesias. Por enquanto, seguimos ouvindo o silêncio da vida, sem palavras.