Por Ellen Bornholdt Epifanio, Doutora em Psicologia (Universidad Del Salvador/ UFRGS), Docente e supervisora IEPP e Psicanalista Aspirante (SPPA) | ellenb@terra.com.br
O “efeito dominó” na sociedade em decorrência da falta de gasolina significou que todos os setores da economia, e a população em geral, foram atingidos de alguma forma. Recordei cenas de um filme, visto há anos atrás: O Ensaio sobre a Cegueira, dirigido por Fernando Meirelles. O longa-metragem foi uma adaptação do livro de Saramago, publicado em 1995. Eis que em 2018 vivemos momentos quase análogos à ficção.
Poderíamos ter beirado um caos social, se a situação aos pousos não fosse se “normalizando”. A partir da falta de combustível, presenciei cenas, as quais evocaram lembranças deste filme. A história narra uma epidemia de cegueira que se espalha por uma cidade, causando um verdadeiro colapso e abalando as estruturas sociais.
As pessoas infectadas são postas em uma quarentena pelo governo para não contagiarem os demais. Não obstante, a força da epidemia não diminui com essa atitude política de isolamento e rapidamente a população vai se tornando cega; revelando as características primitivas do ser humano: lutas por comida, atos de violência, abuso, assassinatos, desespero e desejos desenfreados. Mas ao mesmo tempo é retratado instantes de compaixão pelos doentes e crianças.
A semelhança com essa obra foi bastante óbvia aqui mesmo na nossa Porto Alegre, principalmente com o que poderia ter acontecido. No tempo de greve dos caminhoneiros, testemunhei a crueza e a beleza coexistindo no nosso dia a dia: pessoas brigando nos postos de gasolina e outras tantas até descendo do carro e socializando nas longas filas de espera. Gente afoita por comida, e outros levando alimentos para os mais necessitados.
No fundo, creio que tendemos metaforicamente a cegueira para como inexoravelmente nos interligamos, e acabamos nos alterando ou encontrando “um culpado/ os culpados”. Somos praticamente cegos para a conexão (o feito dominó) que é vivermos em sociedade: um setor não está sendo atendido e reivindica, e todos pagamos o preço. Não há política de isolamento na vida real! Disse Saramago: “Estamos cegos, Cegos que vêem, Cegos que, vendo, não vêem”. E mais uma vez a ficção imita a realidade. Ou vice versa. Tenho a impressão de que o que apareceu na mídia é somente a pontinha de um grande iceberg. E tendemos a ver a pequena parcela, a ponta que nos toca.