É esse convite irresistível que envolve o socializar das crianças. A palavra brincar é a senha mágica que dá acesso ao portal da infância, ao mundo da fantasia, ao estado de encantamento de pequenos e grandes que conservam dentro de si as memórias desses pedacinhos de passado que o brincar torna presente.
Das tradicionais brincadeiras e jogos como corrida de carrinho, casinha, boneca, roda, pega-pega, esconde-esconde, queimada, amarelinha, bola de gude, botão, polícia e ladrão, chefe manda, bafo, entre outras, até as mais recentes e tecnológicas como os jogos digitais: vale tudo que a imaginação invente e reinvente para nos ajudar a crescer aos pouquinhos, em conta gotas e experimentando o mundo adulto através do faz de conta.
No universo do faz de conta podemos ser quem e o que quisermos do nosso jeito. Dá até para encenar que se é grande como papai e mamãe, a “profe”, a vovó ou o vovô, uma princesa, um super-herói ou heroína de quem somos fãs, ou mesmo aquele vilão que põe medo em tanta gente. Esse é um outro jeito de se sentir poderoso diante deste mundo gigante e das exigências advindas do crescer para quem ainda vê os adultos de baixo para cima e deles depende para tudo, inclusive, viver. Pode soar assustador em algumas circunstâncias, mas se a realidade é apresentada gradativamente entre uma história e outra, incluindo a imaginação, a tarefa pode parecer mais fácil e até agradável porque haverá tempo e palavras para elaborar o que, do contrário, poderia ser sentido como caos. O psicanalista e pediatra, Donald W.Winnicott, já dizia que a mãe suficientemente boa apresenta o mundo à criança conforme o vai nomeando, aos pouquinhos, sem pressa; respeitando o ritmo do pequeno ser. Vai narrando sua história e desfiando outras do entorno familiar e da cultura, auxiliando o psiquismo a dar forma ao sentido através dos sentidos. Uma vida sem história resulta em morte psíquca, como diria o psicanalista Celso Gutfreind em Narrar, ser mãe, ser pai.
Tistu, personagem de “O Menino do Dedo Verde”, escrito por Maurice Druon, é criança privilegiada por nascer em uma família amorosa que lhe abastece de suas necessidades, respeitando seus desejos com algumas dificuldades comuns aos pais, que volta e meia se pegam digladiando-se com seus narcisismos e expectativas projetados nos filhos. Ele possui um dom que usará para ir transformando o ambiente que o cerca conforme vai compreendendo as complexidades e contradições do mundo em que vivemos. Pode usar de seu dom como um brinquedo, de acordo com a própria vontade, porque lhe foi permitido ser e dado espaço para sonhar. Ele é curioso e questionador, pois ainda não está com a mente impregnada por preconcepções de seu meio. Assim sendo, provoca estupefação nos adultos que o cercam e pretendem educar sobre a vida. Na maior parte das vezes, é Tistu, com indagações advindas de aguda percepção e sensibilidade, quem ensina. No prefácio do livro, Druon comenta que “toda criança tem a expectativa de agir pelo bem comum e, para isso, aguarda o milagre de ser grande” (pag.10, 1967). Qualquer semelhança com a fantasia infantil de virar super-herói ou heroína não é mera coincidência. O menino do dedo verde pode contar com a façanha de poder agir sem precisar esperar adulto-ser. A esperança que a mensagem desta história traz envolve possibilidades de criação e recriação para modificar a visão de gente grande e experiente “de que as coisas não têm mais jeito”.
No documentário “A invenção da Infância”, de 2000, da diretora Liliana Sulzbach, um pequeno adulto trabalhador repete com desolada convicção o que parece um mantra sobre sua condição: “fazer o quê, não tem jeito”. A afirmação que surge no início do curta provoca a reflexão: “ser criança não significa ter infância”. A fase da vida considerada como infância é relativamente recente em praticamente todas as culturas. Liliana chama atenção para as diferentes realidades de crianças em situações econômicas distintas. No entanto, ao transcorrer de entrevistas, acompanhamos o fenômeno em que mesmo as crianças em situação socioeconômica privilegiada parecem estar sobrecarregadas com diversos afazeres e compromissos, como se vivessem as responsabilidades do mundo adulto precocemente. Ironicamente, tal constatação evoca a época em que não havia diferença entre adultos e crianças, mesmo que atualmente, indícios de indiferenças entre gerações surjam de modo sutil e distinto.
Na atualidade da pandemia gerada pelo Covid-19, passados mais de um ano e meio de isolamento social e escolar, com aulas on-line e o acompanhamento dos estudantes por pais ou responsáveis no lugar do professor, o abismo da desigualdade social parece ter aumentado ainda mais para algumas crianças. Ficar em casa, em certos casos, pode significar estar mais exposto ao trabalho infantil, a maus tratos, entre outras violações. O acesso à educação e à alimentação aí incluída enfrenta mais um obstáculo. Como garantir meios dessas crianças terem seus direitos básicos preservados?
Faço aqui uma proposta: vamos brincar que faz de conta que toda criança tem os seus direitos garantidos pelo ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente – e, portanto, frequentam à escola, têm acesso à saúde de qualidade, casa, comida, amor, cuidado e respeito? Vamos fazer de conta que mudaremos algo para essa realidade ser possível a todas?
Tistu tinha um dom especial: onde ele encostava o polegar, nasciam plantas. Assim, aproveitou para usá-lo e foi modificando o que estava a seu alcance. Talvez tal feito foi possível porque era uma criança amada, e com esse mesmo sentimento percebia seu entorno. Conseguia ver flores onde para alguns só havia lama. Que neste dia das crianças possamos convidar nossa criança a se divertir e a nos mostrar a vida com os olhos da infância e com a promessa do que ela pode ter de melhor. Quem sabe como Tistu, criamos coragem para começar a mudar o que nos inquieta?
Vamos brincar?