por Marina Brasil (Psicóloga, Sócia Aspirante do IEPP, Mestranda em Psicologia – PUCRS)
O mês de junho é o período em que é celebrado mundialmente o orgulho LGBT. Este mês foi escolhido em função das revoltas de Stonewall, nos Estados Unidos (1969). Tais manifestações consistiram em uma resistência bastante agressiva da população LGBT (majoritariamente a população homossexual) contra a repressão policial e as políticas anti-homossexuais vigentes na época. Desde então, o movimento LGBT ganhou maior reconhecimento, disputou e conquistou diferentes espaços políticos – incluindo a despatologização da homossexualidade, acesso a políticas de saúde específicas e um fortalecimento da noção de direitos humanos de populações vulneráveis. Nos dias de hoje, a Parada Gay é um evento mundial, sendo a parada paulista uma das maiores do mundo.
Em função de junho ser um mês de celebração de conquistas e problematização de questões relevantes, acaba sendo também um período de muitas discussões e muito dissenso dentro da academia. Pessoas da área encontram-se, desencontram-se, coalizões e colisões são ininterruptas. Dentro de uma sala de aula, no meio de uma discussão puramente acadêmica, puramente política, puramente diversa, eu me sinto angustiada. Tento entender o que é que está me gerando desconforto. Estamos discutindo um texto de Judith Butler em aula. Na verdade, uma conferência dela, escrita justamente para a parada de orgulho LGBT de Berlim. É um texto em que Butler apresenta uma experiência de desunião entre militantes feministas- onde uma diz não reconhecer a outra dentro do movimento ( por esta ser uma mulher cis, e aquela uma transexual). Esta temática me incomoda. O que seria isto, que movimento é este? Dentro de um grupo politico que luta pelos mesmos ideais, como poderiam as feministas desencontrarem- se, agredirem-se desta maneira? O texto de Butler se mostra insuficiente para responder esta minha inquietação. Como já me ocorreu em diversos momentos, busco o meu refúgio no colo teórico de Freud. Segue a partir daqui, uma tentativa de responder – a mim mesma- este grande desconforto que sintetizou-se em mim a partir deste dia.
Em linhas gerais, Freud defende que para mantermo-nos em sociedade, bem como para defendermo-nos da ansiedade de castração, restringimos, abafamos, redirecionamos as pulsões sexuais e agressivas. É um movimento que o individuo realiza em nome da entrada no mundo em comum. A vida social também é fruto de constantes negociações psíquicas que o sujeito fará ao longo de toda sua vida. A civilização serve para a proteção do homem contra a sua própria natureza, e das relações interpessoais. Freud dirá ainda que é esta renuncia à cultura que rege todas as relações sociais. Além da renuncia às pulsões sexuais, o homem também faz uma outra renúncia da mesma forma cara ao self: a renúncia das pulsões agressivas. O ego tem como um recurso ativo as suas pulsões agressivas. Ou ainda, recurso não, mas impeditivo, circunstância, agente interno latejante. Elas existem.
Seria então a intolerância essa expressão da agressividade de forma disfarçada? Seria uma ferramenta de dar vazão, em doses socialmente autorizadas, aos impulsos agressivos que nos são tão incontroláveis? Por que ela aparece dentro dos grupos que defendem o fim da mesma intolerância? O que é este ímpeto separatista que nos persegue de forma silenciosa e de vez em quando se evidencia em certos espaços? O que faz algumas marginalizações serem autorizadas em relação a outras?
Há algo que nós, como sociedade, negamos: o animalesco, primitivo, o desconhecido. Independente da ética, da política e da razão – o homem é o lobo do homem. Talvez seja esta a ferida narcísica presente neste fenômeno: nos apresentar como ambivalentes e dotados de uma violência que é inerente ao nosso “ser”. Mas negar a violência que nos constitui não é transformá-la.
Ao inicio deste pequeno ensaio, me propus a pensar algumas questões que gostaria de, eu mesma, ter descoberto as respostas.. Quando Freud nomeia de “narcisismo das pequenas diferenças” o movimento grupal que oferece a vantagem de “escoadouro sob a forma de hostilidade contra intrusos”, ele preenche todas as (minhas) lacunas de anteriormente. Assim como também, uma explicação para o conflito vivenciado por Judith Butler, tantos anos depois. Segundo ele “é sempre possível unir um considerável número de pessoas no amor, enquanto sobrarem outras pessoas para receberem as manifestações de sua agressividade”. Freud diz que estas rixas de diferentes comunidades também estão a serviço de uma “satisfação conveniente” através da qual pode-se brandamente dar vazão à agressividade, facilitada a partir da coesão dos seus integrantes.
Mas, então, nos deparamos com um conflito que adquire maior magnitude: como poderemos combater algo que é incontrolável a nós? Seria, então, o que no imaginário social é chamado de intolerância, a expressão do narcisismo das pequenas diferenças? Imagino que Freud diria que sim. Também imagino que Butler teria argumentos de sua teoria que o contradiriam. Mas não seria possível pensarmos uma teoria que, por mais que se defenda o instinto como determinante da existência, seja possível uma sociedade em que as pulsões agressivas, mesmo existentes, possam ser ressignificadas? Me arrisco a imaginar que sim.
Quando pensamos em combater a intolerância e o preconceito, em qualquer espaço, a psicanálise pode ser uma ferramenta que auxilie na compreensão deste fenômeno e na criação de estratégias para tal missão. Além do jogo constante de descarga e repressão, penso também na questão da identificação e da transferência: construímos uma vida interna baseada nas identificações com inúmeros outros que nos invadem de diversas formas ao longo da vida. A partir do fenômeno transferencial, jogamos o tempo todo, de dentro para fora e vice versa, os coloridos que demos para estes processos primórdios ( de identificação). Se resistimos ao reconhecimento do diferente, pode ser que seja em função deste ímpeto de colorir a experiência atual às cores de experiências passadas. É um ímpeto de reconhecer, ao invés de conhecer. E enquanto objetos do conhecimento do outro, resistimos, na tentativa de reafirmar a nossa diferença em relação ao que se pretende ver em nós.
Está no cerne da existência do ser humano. Colonizamos o outro para colorir com as mesmas cores e permanecer nesse lugar conhecido. É o que somos. Há um estudo que demonstra que a possibilidade de aumentar a amplitude de contato de pessoas preconceituosas com os “outros” dos quais o preconceito é direcionado diminui-se a estigmatização e atitudes agressivas para com estes outros (Allport, 1954/1979; Pettigrew & Tropp,2005). Dentro da psicanálise, talvez seja o que chamamos de alteridade.
Muitas das teorias feministas apoiam-se em entendimentos que vão contra a ideia psicanalítica de instinto. Inclui-se, de forma abrandada, a teoria queer de Judith Butler. Quando a autora apresenta o caráter performático da sexualidade, ela coloca em segundo plano a questão insitintual. Entendo, sim, a importância politica de serem fortalecidas as ideias de Butler e de tantas outras autoras feministas que explicam fenômenos da sexualidade e de gênero. Mas, talvez, a única forma de conseguirmos domar, mesmo que temporariamente, ou então constantemente dentro de nós mesmos, este “lupus” (lobo) seja através do argumento da alteridade. Ou ainda, se pudéssemos pensar em como promover a alteridade em diversos espaços. Talvez assim possamos pensar melhor sobre o direito daquele outro que pouco conheço, e mesmo não o amando, o reconheço tal como é.
A ideia de Freud expõe uma verdade que vai contra a ética social, os ideais políticos. Talvez, por uma negação narcísica, eu acredite que por mais que sejam verdadeiras as postulações freudianas, ainda precisaremos dar um jeito de defender os direitos daqueles outros que pouco conhecemos. Não temos como abrir mão dos dizeres de Freud. Eles são atemporais justamente porque não correspondem à uma ética de existência. Mas não podemos parar e atarmo-nos ao determinismo de suas palavras. Dar-se conta da agressividade e recebê-la, aceitá-la, tem mais eficácia. Mas não podemos parar apenas aí. Da mesma forma com que a prática psicanalítica parte do pressuposto de buscarmos conhecer, cada vez mais, o que temos de desconhecido- que sabemos, virá a luz uma fatia muito pequena de nós mesmos- para buscarmos algo como que um projeto de felicidade. Ou então, um estado de maior equilíbrio, funcionalidade, e com isso tranquilidade. Precisamos reconhecer os coloridos que damos às experiências que vivemos, justamente como coloridos. Não conhecemos estes outros. De nada sabemos sobre suas experiência de serem estes “outros” para a grande maioria. Mas assim como o nosso desconhecido existe, estes corpos diversos que desconhecemos também existem. Porque por mas que Freud acreditasse utópico um viver social sem o narcisismo das pequenas diferenças, nunca devemos deixar de acreditar na missão para com o bem- estar da nossa sociedade, como psicólogos e estudiosos da psicanálise.