Ana Lúcia Mandelli Guaragna, psicóloga, sócia graduada do IEPP, coordenadora do Conversas Afinadas.
Caminhe, caminhar melhora a circulação, previne diabetes, reduz colesterol, melhora o coração. Dentre tantos benefícios que traz para o corpo e para a mente, acho que descobri mais um, o benefício social.
Aos sábados costumo ir na feira, vou a pé, normalmente no caminho começo a pensar no que tenho que comprar e nas receitas que vou fazer ao longo da semana, faço a lista e penso na minha vida. Aos poucos sinto algum cheiro muito ruim e vejo que estou passando pela casa/calçada de alguém, vejo crianças com suas famílias, vizinhos se cumprimentando, alguém que nem conheço me deseja um bom dia. Percebo nomes de prédios que nunca tinha reparado, um deles se chama “Asperge”, curioso. Na feira aquele tumulto, a entrada na feira é sempre um momento de confusão, muita gente, diversas coisas acontecendo ao mesmo tempo, tenho que pensar no que preciso comprar mas também ver o que a feira me oferece, queria brócolis, fui focada em comprar brócolis, mas não tem, não está na época, tenho que respeitar o tempo da natureza. Encontro o homem da “lixinha”, sinto que temos um contato eu e ele, ou pelo menos eu com ele, já temos nossa rotina: ele me pergunta se quero comprar uma lixinha, digo que lhe compro mas que não preciso da lixinha que ele não precisa me dar, ele insiste, faz questão e diz que é de coração, sempre aceito, não sei o que fazer com tantas lixas. Elas me lembram dele, me lembram essa conexão com o outro, essa troca que não é monetária, o desejo de ser útil para alguém. Sigo minha caminhada, compro minhas verduras, recebo desejos de boa semana, todos parecem felizes na feira. É diferente do supermercado, na feira a pele das pessoas é mais bonita, os sorrisos, tem bebês, crianças, cachorros, tem pessoas de diversas tribos, todas convivem. Ganhei até um abraço, estava tendo uma apresentação de deusas, sim, deusas, uma delas fantasiada me perguntou se eu queria um abraço, que coisa mais estranha isso ganhar um abraço assim, de uma deusa. Aceitei, afinal esse estava sendo o clima, foi bom, foi estranho. Por que seria estranho se deixar tocar pelo outro? Vejo umas senhoras em uma banca explicando sobre as saladas, fazendo demonstrações e contando que fica uma delícia usar a casca do aipim pra fazer chips, da para aproveitar tudo, todas as partes, inclusive as que sempre descartamos!
Volto da minha caminhada reflexiva, um homem passa por mim carregando um colchão enrolado nos braços, esta é sua casa e ele a carrega nas costas, penso nele. O mundo é triste e bonito ao mesmo tempo. Essa semana foi complicada: um ano do assassinato de Marielle, julgamento do menino Bernardo, massacre na escola de Suzano, atentado na mesquita na Nova Zelândia, dentre tantas outras tragédias nem sempre divulgadas. Não é só essa semana, vivemos tempos difíceis, por que o ser humano faz tão mal ao ser humano? Por que essa conexão/compaixão é tão complicada? Freud tentou responder a essa questão em “ O mal-estar na civilização” (1930), referindo que o impulso à agressão é uma disposição pulsional original e autônoma do ser humano, e que esse seria o maior obstáculo que a civilização possui. Einstein no século passado também queria entender essa questão que hoje novamente encontrei. Dessa forma, não serei eu quem estarei apta para reponde-la, talvez a resposta já nem importe, mas sim o encontro com essa pergunta, a cada caminhada, a cada andança.
Penso no tempo para elaborar o que vivemos, esse tempo simples do passo a passo difícil de encontrar na época atual. De alguma forma acredito que começamos a ter um movimento na sociedade para diminuir o ritmo, os habitantes das cidades parecem já reivindicar um urbanismo voltado às pessoas, começamos a ter mais ciclovias, recentemente os patinetes e um maior número de eventos de rua. Mas ainda acho que nenhum desses meios substituem uma caminhada, estar inserido no espaço urbano te convoca a olhar para o outro. Jan Gehl, arquiteto e urbanista dinamarquês, autor do livro “Cidade para Pessoas”, acredita que em essência caminhar é uma forma especial de comunhão entre as pessoas que compartilham o espaço público. Há muito mais em caminhar do que simplesmente andar! É a possibilidade de ter um contato direto entre as pessoas e a comunidade do entorno, ar fresco, prazeres gratuitos da vida, experiências, informações. Atualmente, essa comunhão, conexão, ligação (ih será que a deusa da feira que me abraçou foi uma versão feminina de Eros?), papel fundamental da pulsão de vida presente em todos nós parece estar frágil.
Para quem possa se interessar, o vendedor de lixas citado aqui fica na feira orgânica do bom fim, todo sábado. Essa é a melhor das propagandas que eu poderia fazer neste momento, caminhe e compre uma lixinha, ela vai tocar teu coração!