Alicia Beatriz Dorado de Lisondo é analista didata e psicanalista de crianças e adolescentes da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), filiada à International Psychoanalytic Association (IPA) e ao G.E.P., em Campinas
1. Como a senhora entende a importância de estudarmos o tema da “Fraternidade”?
O complexo fraterno juntamente com o complexo de Édipo, entre outros fatores, esculpem a identidade de um ser humano. O lugar na prole, o sexo, as missões a cumprir, os projetos identificatórios são muito importantes na constituição da subjetividade. As novas técnicas de fertilização assistida com a possibilidade de reduzir óvulos ou de fertilizar vários óvulos simultaneamente colocam novas questões… A culpa ante os “irmãos mortos”, a surpresa, o susto, o despreparo dos pais para dar conta de gêmeos ou trigêmeos inesperadamente são fatores de risco psíquico para o desenvolvimento mental. Às vezes, os pais adotam uma criança, para logo conceber o próprio filho. Nesse complexo, há diferenças entre o filho adotado e o legítimo. Penso que as novas configurações familiares nos colocam novos desafios na clínica.
2. “As contribuições da Psicanálise na cultura atual fazem-se cada vez mais necessárias”. A senhora poderia comentar essa afirmativa?
A Psicanálise é uma ciência que “extramuros” permite refletir sobre a cultura, as relações sociais, políticas, antropológicas. As conquistas clínicas, os avanços teóricos e técnicos permitem tratar uma gama mais ampla de transtornos como autismo, adições, doenças psicossomáticas, etc. A Psicanálise, ao estudar a dimensão inconsciente em relação dialética com a consciência na formação da personalidade humana, clama pela formação subjetiva. A cultura atual, às vezes, caminha na contramão do verdadeiro crescimento mental. O imediatismo, o uso indiscriminado das novas tecnologias, a falta de limites claros e precisos, a confusão entre o pathos e a normalidade, o incentivo indiscriminado ao princípio do prazer, as dificuldades para aceitar a passagem do tempo e a diferença entre as gerações dificultam cimentar os pilares de sustentação da personalidade. A infância pode não ser cuidada com bebês em creches por longos períodos, assistindo a TV e a filmes por longas jornadas, sem a convivência humana estável, confiável, singular para aprender com as experiências emocionais. O imediatismo para resolver a sintomatologia abre as portas da psicofarmacologia que promete soluções às vezes mágicas. Cada vez mais crianças estão sendo só medicadas, sem considerarem-se as consequências e a complexidade da sintomatologia que merece uma avaliação psicanalítica para formular outras hipóteses sobre o déficit de atenção, os problemas escolares, a hiperatividade, entre outras dificuldades.
3. Como a senhora percebe o desenvolvimento do pensamento crítico na Psicanálise e nas instituições de formação psicanalítica?
As instituições de formação psicanalítica têm hoje uma enorme responsabilidade ética, para zelar e esculpir uma identidade analítica criativa, crítica, pensante, pluralista e madura. É preciso que as instituições sejam verdadeiros berços de produção científica e investigação. O vértice científico precisa ser privilegiado. O analista precisa dialogar com as outras ciências. É fundamental o rigor e a seriedade na formação de um futuro colega, sendo a análise pessoal o pilar fundamental.
4. Por quais razões a senhora costuma realizar uma sessão com toda a família no processo de avaliação?
A sessão com toda a família permite observar os vínculos entre pais e filhos, o complexo fraterno, o lugar do paciente nessa configuração, a forma como cada progenitor se relaciona com o paciente e com o analista, as fantasias de cura, etc. Acho um valioso recurso na avaliação psicanalítica que levanta hipóteses a serem validadas, confirmadas, refutadas. A vivência na sessão, quando o paciente encontra no analista continência, pode revelar preciosidades. Os gestos, jogos, dramatizações ajudam os pais a perceberem a dor mental e serem aliados no processo terapêutico. Os pais afirmam, numa entrevista, que a criança de 3 anos não sabe da separação entre eles porque o pai viajava muito, e a mãe refugiava-se na casa da própria mãe, avó do paciente, ficando tudo igual. Na entrevista familiar, a criança tenta juntar com um barbante o casal da família, sem sucesso. Os pais choram porque fica evidente que a criança sabe da separação e de sua impotência para unir o casal, motivação de sua concepção.
5. Como podemos pensar e trabalhar as questões reais do terapeuta no setting tanto nas análises como nas psicoterapias de orientação psicanalíticas?
A pessoa do analista é um fator fundamental nos processos analíticos, por isso a exigência da análise pessoal. A equação pessoal do analista está sempre presente, também com os pontos cegos. O analista precisa humildade quando percebe os impasses nos processos analíticos. O mal-estar no processo que se cronifica, as ameaças de interrupção, as mudanças no setting, as somatizações do analista sinalizam que é preciso pedir ajuda a um colega e supervisionar seu trabalho. Às vezes, é preciso voltar à reanálise, quando se percebe a intensidade da contratransferência complementar (Racker), ou seja, o analista está sendo mexido na escuridão de sua mente pelo paciente, sem poder perceber e dar-se conta da encruzilhada. Às vezes, é preciso a interrupção do trabalho com esse paciente específico. Há inúmeras formas não conscientes de acabar com um processo analítico.
6. Como percebe a influência das novas configurações familiares na técnica psicoterápica e psicanalítica?
As novas configurações familiares exigem-nos muita disciplina para não se interpretar preconceituosamente ou como um Super Eu de uma moral sem moral a estes pacientes. Na técnica psicoterápica ou psicanalítica, importa zelar pela neutralidade possível, como meta impossível a aspirar. O psicanalista não pode julgar, orientar, decidir sobre a vida dos outros, aconselhar. Sua função é ajudar a pensar sobre as implicâncias dessas configurações. É importante cuidar de seu lugar e de sua função em situações de muita angústia e turbulência.
7. Estudando seus textos, notam-se referências aos conceitos de rêverie e função alfa. Como trabalha e integra esses dois conceitos?
Rêverie implica a misteriosa relação da mãe com o filho, que nasce nas entranhas do corpo. A rêverie é um canal e pode ser tanto benigna quanto hostil. O analista em sessão trabalha com o sonho alfa para sonhar aquilo que o paciente não pode sonhar, tal como Bion nos ensina em Cogitations.
8. Em seu trabalho, observa-se a importância para o esclarecimento da verdade na história dos pacientes como uma condição para o desenvolvimento. Sabemos que, muitas vezes, o paciente não está preparado para a verdade, e a imposição desta, num momento de fragilidade, pode levar a um colapso do próprio paciente ou da relação analítica. Nesse sentido, entende que existe um tempo de preparo do paciente? Como se sabe quando o paciente está preparado para saber a verdade de sua história?
A verdade dá-nos as costas, diz Heidegger. A verdade alimenta a mente, e a mentira envenena-a. Há aproximações tangenciais à verdade humana, possível, parcial. O timing é uma questão do Psc. como arte. A intuição do analista é um precioso indicador do momento. Como sabemos que o paciente não está preparado para a verdade? Se um paciente precisa negar que está com câncer, porque esse diagnóstico é insuportável para ele, cabe ao analista com sabedoria mostrar a dor, as dificuldades para lidar com situações penosas, o medo… e também o adiamento de procedimentos penosos. É preciso oferecer continência para que a verdade possa ser assimilada e digerida. Quando há um sonho como “uma árvore no outono perdendo as folhas, só fica o couro, não o tronco”, podemos apostar que já há um trabalho de elaboração em andamento. A paciente pode sonhar com a queda do cabelo na quimioterapia. Após o outono, pode vir a primavera e o renascimento dos cabelos.
9. A senhora escreve: “A adoção é uma situação muito traumática. Há desafios específicos, além da cesura e do trauma do nascimento: a fratura entre a vida pré-natal e pós-natal quando uma conhecida mãe biológica se perde para sempre”. A angústia de aniquilamento poderia ser potencializada. A senhora acredita que o fato de ser argentina, e não brasileira, de ter uma outra “língua-mãe”, poderia favorecer uma maior empatia com relação ao atendimento do adotado, ou poderia, ao contrário, ser mais difícil por, simbolicamente, representar essa quebra entre a mãe biológica (Argentina) e a mãe adotada (Brasil)? E que, a partir disso, a angústia de aniquilamento poderia ser potencializada na analista ou no paciente, por exemplo?
Eu devo muito aos pacientes adotados e às famílias. Essa clínica permitiu-me aprofundar a minha análise e descobrir outras dimensões da minha vida. A experiência da migração certamente permitiu- me aproximar da experiência da adoção. Eu acho que qualquer experiência se complica quando não foi analisada no próprio sujeito e, então, entra como obstáculo e não como nutriente no processo analítico. A migração era uma camada superficial da cebola. Numa reanálise, foi possível perceber algo muito mais profundo. A minha mãe é loura de olhos claros, e eu sou bem morena de olhos escuros como meu pai. Não era reconhecida como filha da minha mãe, quando pequena. As minhas tias, irmãs do meu pai, eram vistas como minhas possíveis mães. Eu era tão diferente, que meu apelido, só lembrado na minha análise, era de “orfanita”, ou seja, eu tinha vivenciado, por ser morena, menina, a decepção materna. A questão é o uso, a função de nosso repertório histórico que precisa estar a serviço da compreensão do paciente.