Em tempos de Coronavírus, como milhares de pessoas ao redor do mundo, estou atônita com os acontecimentos e o que ainda está por vir. Além disso, encontro-me assoberbada entre tarefas da casa, crianças sem escola, atendimentos online, e o medo. Neste contexto, ver um filme passou a ser artigo de luxo.
Ainda bem, abri uma brecha para o longa-metragem, o Poço, do diretor espanhol Galder Gaztelu-Urrutia. Um soco no estômago do início ao fim. A ficção trata de uma prisão vertical, com duas pessoas por andar, que recebem um banquete luxuoso em uma plataforma. Essa permanece por apenas dois minutos em cada piso e então vai descendo. Aos últimos, restam migalhas e então, acometidos pela fome e o desespero, os detentos praticam canibalismo. O protagonista inicia no piso 48, de forma que ele necessita aguardar cada um dos 47 níveis acima para se alimentar. A revolta do personagem principal é que as pessoas dos andares superiores não se importam com quem está abaixo, mesmo que a cada trinta dias estarão em um outro lugar (as duplas trocam aleatoriamente e sem escolha de local). Um dia estás no topo, no outro poderás estar embaixo. Ele se dá conta que se cada um se alimentasse do estritamente necessário haveria comida para todos e somente uma solidariedade espontânea e global poderia mudar essa dinâmica.
A conexão com nossos dias é cristalina: justamente em decorrência da pandemia, a solidariedade nada espontânea, nos faz estar em isolamento para o bem geral de todos, seguindo as indicações da Organização Mundial de Saúde. Se uma criança se contamina pelo vírus, mesmo assintomática ela pode transmitir ao vizinho, esse contagia o seu pai, que necessitará UTI, e no final das contas, pode faltar leito para mim. Estamos todos interligados, a fome de alguém hoje poderá se converter na violência amanhã contra a minha família.
Estou em um piso, na minha casa e com saúde, mas amanhã eu poderei estar em outro. Esse vírus mostra a nossa engrenagem, o nosso poço. Chegando, se alastra e transforma o mundo, a duríssimas penas. Revela o quanto o bem comum é uma questão de sobrevivência pessoal também. Sentimos no cotidiano o peso da célebre frase: um por todos, todos por um!
Ellen Bornholdt Epifanio.
Psicanalista aspirante da SPPA, doutora em Psicologia pela UFRGS, docente do IEPP