Por Marta Costa Coelho Leal
O filme “Antes que o Mundo Acabe” inicia com um pai selando uma carta ao filho. Paralelamente, as localidades de Tailândia e Pedra Grande, às margens do rio Caí, vão se aproximando a partir de pontos de identificação: bicicletas e uma narradora que, inicialmente, se aventura através de recortes, filmagens, mapas, quebra-cabeças e animais da selva. Maria Clara, irmã do personagem principal, Daniel, fica quase todo o filme na parte central da casa – a sala – e ali, atenta, como pano de fundo, vai narrando parte da história de Daniel. Mais adiante, o protagonista resgata, com o desenrolar da película– em grande parte, a película da máquina fotográfica do pai – parte da sua história que ficou congelada.
Em seguida, três jovens adolescentes – Lucas, Mim e Daniel– conversam à beira de um rio, sobre para que lado ficam as localidades de Viamão, Nova York, Porto Alegre, Santa Maria… cada um expressando o movimento de ir mais longe, mais longe do que suas bicicletas alcançam. Seus projetos de independização começam a ser esboçados.
O pai de Daniel, na selva, também, à beira de um rio, revela que fotografa em busca do que existe de diferente: gente.
Daniel, no quarto, em um jogo de computador, comanda um avião em combate que não consegue passar do Atlântico e explode. Seu amigo, Lucas, dá as coordenadas:
–Gruda no avião. Tem que ir até a Ilha dos Açores, depois embarcar num dos navios.
Este é um jogo que se repete na tentativa de passar de fase, avançar, crescer. Porém, o personagem ainda não consegue progredir; seu avião explode, isto é, ainda não está pronto para prosseguir, pois faltam partes da sua história.
O computador é um meio de conectar Daniel com o mundo, com as pessoas. Na maior parte das cenas, ele está ligado, mostrando na tela ora uma cara alegre, ora uma cara triste. Mostra a oscilação de humor de Daniel, o que revela a oscilação adolescente.
No dia seguinte, o jovem recebe uma carta endereçada: “de Daniel para Daniel”. Fica confuso. Diz:
– Não é para mim.
Na cena seguinte, no laboratório da escola, Daniel e os colegas estão às voltas com ácidos, bases, aglutinogênios, ácidos sulfúricos, ou seja, uma metáfora dos componentes hormonais da carga da adolescência. A professora de Química salienta que deverão estudar para a prova todos aqueles componentes “perigosos” e ácidos e mais a Revolução Francesa. Revolução? Talvez ela esteja se referindo à grande revolução que é a etapa adolescente.
Nesse momento, Daniel observa “algo” entre a Mim e Lucas: a sexualidade, o interesse sexual pelo outro, a busca de objeto e a formação de um casal, no qual um fica de fora. Sente-se traído, reage com fúria, quebra os reservatórios dos líquidos e bate a porta. Sai correndo, e sua bicicleta e a forma como pedala, a força e a intensidade da velocidade revelam seu humor. Entra em casa e destrói o quebra-cabeça que está sendo montado pela irmã. “Vai para o quarto pilotar o avião” que precisa avançar. Nesta hora, Antônio, seu padrasto, entra e deixa uma carta à vista de Daniel e, naquele momento, o avião pousa na plataforma, na base. O monitor do computador sinaliza: missão cumprida!
Podemos entender, nesta cena, que a entrada do pai na vida de Daniel é permitida. O contato está formado a partir daquela primeira carta que chega até Daniel.
Tailândia e Pedra Grande encontram-se. A selva “entra” no quarto de Daniel e este, no seu tempo, abre o envelope e vai descobrindo o pai. O tempo passado que ficou congelado começa a ser historiado. A interpretação da narrativa do pai o fará compreender o tempo perdido. Assim, a partir das leituras das cartas do pai e da observação sensível das fotos de um “outro mundo”, começa a montar o pai, “as suas partes” que antes estavam separadas dentro de si. Uma nova identidade de Daniel começa existir, agora o Daniel com o seu pai. Depois que monta o quebra-cabeça feito de fragmentos do pai, de posse de um pai inteiro, responsabiliza-se por seus atos, vai até o diretor da escola e diz:
–Eu preciso falar a verdade. Fui eu; tive um ataque e quebrei as coisas do laboratório.
Em uma cena onde todos estão à mesa, um diálogo se estabelece, no qual a entrada do pai fica evidente. Maria Clara salienta que não é a alface e sim o alface, isto é, insiste na nova “identidade” do legume antecedido pelo artigo masculino “o”. Antônio traz para a discussão novas variedades de legumes: couve chinesa, tomate gaúcho, alface americana, couve de Bruxelas, ou seja, é estabelecido um diálogo no qual se rompem as fronteiras entre os países, e o que se incorpora faz parte do mundo. Mostra que há mais a conhecer.
O filme prossegue, e Daniel, atormentado pelos acontecimentos, busca conversar com Antônio:
–Meu melhor amigo está sendo acusado de ladrão. Roubaram a minha bicicleta, e tem uma cara aí dizendo que é meu pai.
Diante do sofrimento de Daniel, Antônio propõe fazerem pão. Falam das complicações da vida, das mulheres, e Daniel diz:
– Complicado é ter dois pais. Por que tenho que encarar um cara que não sabe nada de mim?
–Porque ele existe! Porque faz parte da sua história, e porque talvez as coisas não sejam assim tão simples – responde Antônio.
Em seguida, é o momento de a mãe resgatar a história junto ao filho. Conta como era seu pai, seus ideais, o quanto se amavam, mas que tinham objetivos de vida diferentes.
A primeira saída de Pedra Grande acontece. Porto Alegre é o destino, e lá irá encontrar com um amigo do pai, talvez um ensaio para o contato com o seu pai. Sai de Pedra Grande acompanhado por Mim e Lucas, ainda em uma triangulação.
Daniel retorna sozinho. Está desiludido, pois “o casal ficou”. Assim, ensaia o ingresso em uma outra fase: a etapa adulta, que se caracteriza por ter que abrir mão, fazer escolhas e conviver com sentimentos de ser deixado. Retorna a sua cidade, munido de objetos do pai, que o capacitam para o ingresso gradual na etapa adulta.
Desiludido, toma o primeiro porre que expressa a dor de ser excluído.
Logo após, o diálogo que estabelece com Antônio revela que os “tempos são outros”. Daniel pergunta a Antônio:
–Tu nunca tomou um porre?
–Na tua idade, não!
–Na minha idade, tu recebia e-mail?
Com esse curto diálogo, Daniel mostra que já confronta, questiona, posiciona-se. Logo que Antônio sai do quarto, Daniel chora, olha para o quebra-cabeça montado do pai inteiro e vai até o computador. Agora está “pronto” para dialogar com o pai. Por meio de uma escrita espelhada, escreve na tela: Daniel, em seguida deleta e o denomina de Pai. Quer saber do pai, se é canhoto, se já tomou um porre, e o principal: Por quê? São muitos os porquês, mas talvez o mais importante seja o porquê da ausência do pai.
A partir desse momento, entra em seu quarto um pai mais presente: com voz, imagem e movimento. A filmagem que recebe através de uma máquina presenteada pelo pai os mantém mais próximos. Sua história pregressa é contada.
Daniel não larga mais a máquina fotográfica e passa a narrar a sua história atual, sua atual constituição familiar, sua escola, seus amigos e sua cidade.
As fotos de Pedra Grande chegam à Tailândia. Agora, é a vez de o pai descobrir o filho. Ele o faz com uma foto de Daniel que recebe e a coloca no espelho.
Assim o filme termina, com um convite de Daniel para Daniel, um convite de pai para filho, que este possa ir ao seu encontro para poderem prosseguir narrando as suas histórias. Maria Clara intitula o epílogo com uma nova história que se inicia: As Orquídeas do México.
Comentário do Filme “Antes que o Mundo Acabe”. Direção de Ana Luiza Azevedo; Roteiro de Ana Luiza Azevedo, Giba Assis Brasil, Jorge Furtado e Paulo Halm; Adaptação do Livro de Marcelo Carneiro da Cunha