As tecnologias têm estado cada vez mais presentes no cotidiano das famílias contemporâneas. Talvez os livros e páginas impressas tenham sido deixados de lado para dar espaço aos celulares, tablets e televisões. Desta forma, contribuem para que cada vez mais as crianças e os adolescentes permaneçam sendo “cuidados” por televisões e tenham como companhia personagens de desenhos animados. Estes têm sido um recurso cada vez mais comum utilizado por pais a fim de manter os filhos ocupados, seja dentro de casa ou em ambientes públicos.
Há quem aponte os benefícios deste uso e há quem aponte os malefícios da tecnologia. No entanto, ela está presente no nosso cotidiano e, atualmente, é quase impossível evitar que as crianças tenham acesso a ela.
É fundamental que antes de criticar os aparelhos eletrônicos pensemos a serviço do que e de quem eles estão, pois podemos encontrar na literatura atual vários benefícios que os desenhos animados oferecem para crianças e adolescentes, assim como os livros de contos se propunham. Não vivemos hoje do mesmo modo que há 10, 20, 30 anos ou séculos atrás; nossa maneira de ver e entender o mundo muda constantemente, assim como as relações interpessoais. Consequentemente, seria mais do que esperado que uma das principais formas que oferecemos às crianças de entender o mundo tenha sido modificada, acompanhando a sociedade e demandas atuais.
Dentro dessas mudanças estão as interações familiares. As crianças vêm ocupando um lugar de maior valorização na cultura atual, em que são ouvidas, olhadas e atendidas em suas necessidades. Elas têm mais voz e, em muitos casos, maior autoridade dentro da família, o que contribui para uma indiferenciação entre as gerações, tornando a hierarquia, a autoridade patriarcal e os limites algo obsoleto. Então, é possível perceber que os membros da família tem estado mais próximos, no entanto é de se questionar essa proximidade dos pais com os filhos. Será que esta aproximação inclui um envolvimento afetivo, tendo em vista que estar mais vinculado à infância dos filhos remete os pais à sua própria infância, assim como suas expectativas, desejos e falhas com relação aos filhos? Corso & Corso (2016) discutem o tema, afirmando que na cultura vigente esta indiferenciação entre as gerações está muito presente, assim como uma imposição de cuidado e proximidade com as crianças, não deixando lhes faltar nada do que desejam. O que caracteriza uma forma de relação em que os pais se preocupam constantemente em atender todas as vontades da criança, porém acabam se esquecendo que o limite e um distanciamento entre infância e adultez também é fundamental para a constituição da criança. Assim, podemos identificar pais de fato mais próximos dos filhos, mas não conseguindo captar as reais necessidades de sua prole.
Portanto, é de se pensar se os desenhos animados, através do humor, sarcasmo e sutilezas, que são ganhos dos contos atuais, não estão denunciando a forma de relação contemporânea entre pais e filhos. Hoje em dia, as crianças ocupam um lugar de maior valorização; sendo assim, o infantil ganhou mais espaço nas televisões também. Nos desenhos animados podemos perceber que são elas que normalmente ocupam o papel principal e não mais os príncipes e princesas. Assim, colocam em cena as conflitivas próprias da infância, o que pode facilitar o processo de identificação com os personagens, pois retratam quem elas são naquele momento. Quanto aos adultos, é comum que ocupem o papel de idiotas, deixando, sem perceber, que as crianças, os comandem (Corso & Corso, 2016). Vários dos desenhos disponíveis hoje em dia, têm como base esta trama, como em Os Padrinhos Mágicos. Percebe-se no desenho que a adultez, de uma forma geral, é retratada como chata, maldosa, negligente ou idiota.
Timmy Turner é um menino de 8 anos, filho único de pais que podem ser considerados negligentes ou “idiotas”. Ambos se esforçam para cuidar do filho e ser afetivos com ele, no entanto é comum que acabem falhando e não conseguindo perceber o que ele precisa e quer lhes dizer de fato. Por exemplo, quando se ausentam por algum motivo e chamam Vicky, a babá, para tomar conta de Timmy. Depois de inúmeras tentativas de explicar para os pais que ela é uma pessoa maldosa e ser mal interpretado, ele já desistiu e tenta dar conta de suas malvadezas da forma que pode. Além disso, Timmy enfrenta problemas com os valentões da escola, com a menina que ele gosta e com o seu professor, que sempre lhe dá notas ruins e é um eterno obcecado pelos padrinhos mágicos de Timmy, pois teve os seus quando criança e os perdeu à medida em que foi crescendo. Podemos pensar em uma inveja da infância e dos seus ganhos. E por isso uma dificuldade em se conectar e olhar para ela com suas reais necessidades, pois olhá-la significa dar-se conta de suas próprias perdas.
No entanto, para lhe ajudar, o menino tem seus dois melhores amigos e seus padrinhos mágicos, os responsáveis por realizarem seus desejos mais mirabolantes. Cada episódio da série retrata algum problema cotidiano de Timmy com alguns desses personagens, que sempre o levam a recorrer aos seus padrinhos mágicos para darem conta de suas angústias ou desejos com relação a situação vivida naquele dia.
Wanda e Cosmo são os responsáveis, de certa forma, por criar um espaço onde tentam dar conta da demanda diária do seu afilhado. O que poderia ser o desejo de qualquer criança, não é? Ter um espaço onde todos os seus desejos são possíveis, onde derrotar a babá ou o professor mau é possível, onde a menina que ele gosta também gosta dele, onde ele pode enfrentar os colegas valentões e os pais entendem de fato suas necessidades…
Será que os contos, sejam os clássicos ou os contemporâneos, não estariam a serviço das crianças, oferecendo tramas mágicas e personagens, assim como Cosmo e Wanda estão para Timmy? Podendo realizar, mesmo que em um mundo fantasioso, todos os seus desejos e o melhor: sem qualquer adulto descobrir. Os desenhos podem servir como palco para as crianças depositarem nos personagens seus “enroscos” do dia a dia. Seria como um mundo mágico para o qual elas podem “fugir” temporariamente, que as ajuda no processo de elaboração, proporcionando significados e respostas de uma forma que lhes faça sentido.
Levando isso em consideração, Bettelheim (2015), assim como outros autores clássicos e atuais, afirma a necessidade da criança desse mundo mágico, a partir do qual elas conseguem encontrar respostas através de uma linguagem acessível ao infantil e talvez não ao mundo adulto. O autor pontua que por mais que os responsáveis se esforcem em demasia para explicar qualquer situação para a criança, ela irá captar apenas o que lhe faz sentido no momento, o que é diferente para o adulto. Elas ainda possuem níveis intelectuais muito distantes, assim como formas de ver e entender o mundo ao seu redor
É difícil vermos brincadeiras de crianças que não estão permeadas pelos personagens. É comum que elas queiram, inclusive, se transvestir de alguns deles, talvez como uma forma de vivenciar o que é do seu desejo genuíno, porém deslocado para o personagem. Desta forma, podendo se distanciar de suas angústias para elaborá-las.
Tendo isso em vista, podemos pensar nos desenhos como facilitadores desse processo de brincar, oferecendo personagens e tramas para as crianças elaborarem os excessos que vivenciam. É visto que há benefícios e malefícios do uso das tecnologias, portanto devemos constantemente nos questionar a respeito dos novos instrumentos que oferecemos às nossas crianças na atualidade, sempre levando em consideração que uso estamos fazendo deles.
Lívia Koltermann
Acadêmica do curso de psicologia da PUCRS
Estagiária do IEPP – Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia.
CORSO, D. L.; M.. A psicanálise na terra do nunca. Porto Alegre: Artmed, 2016.
BETTELHEIM, B.. A psicanálise dos contos de fadas. São Paulo: Paz e Terra, 2014.