por Letícia Machado Moreira
Peter Pan é um menino que não cresce. Mora na Terra do Nunca, lugar encantado, onde se pode ficar criança para sempre. Uma ilha mágica, onde ele leva os Meninos Perdidos para brincarem no mundo da fantasia. Lá, os meninos podem ser índios, piratas, guerreiros, heróis. Na Terra do Nunca podemos ser o que quisermos. Winnicott, inglês como Peter, deve ter ido até lá algum dia, pois anos mais tarde, falou de um lugar mágico como a Terra do Nunca: o espaço potencial.
Nesse espaço podemos fazer de conta, podemos ser outro, podemos ser nós mesmos. Peter Pan possibilita esse espaço às crianças, embora ele não queira deixar de ser criança, ainda assim, possibilita que as crianças sejam crianças para depois voltarem a Londres para crescer, para seguir adiante.
João e Miguel vão a Terra do Nunca levando seus objetos transicionais. Miguel com seu inseparável urso. João com seu guarda-chuva. Assim eles vão, autorizados pela janela aberta da senhora Darling e voltam, no barco que possibilita o senhor Darling reconhecer que já esteve na Terra do Nunca. Wendy, a irmã mais velha dos meninos, não precisa mais de objetos, já guardou a mãe dentro de si, está repleta de história para contar aos irmãos e aos demais meninos perdidos. Wendy vai para brincar de ser mãe: faz de conta que ela é mãe de todos, ela coloca-os a dormir, conta histórias, marca a posição do pai, não os deixa sentar na cabeceira da mesa, pois mesmo que Peter não consiga ocupar o lugar do pai, Wendy consegue marcar esse lugar.
“O que é uma mãe?” perguntam os meninos parados ao redor de Wendy. “Mãe, é aquela mulher que conta histórias, que nos dá um beijo na hora de dormir”, explica a menina. Eles querem brincar de ser filho, para poder crescer em Londres nos braços na verdadeira mãe. E Wendy pode levá-los para casa, desde que Peter, como pai, autorize a partida, e assim o casal da brincadeira entrega as crianças para o casal Darling, que mesmo reclamando das dificuldades da vida, pode educar e amar as crianças.
Enquanto os meninos perdidos se reencontram, Peter Pan permanece preso na infância idealizada. Ele, que possibilita a ponte com o mundo adulto, é passagem. Peter Pan não pode crescer, o seu papel é auxiliar os pais no crescimento dos filhos.
A fada Sininho explica “sou muito pequena, por isso sou toda amor ou toda ódio, não posso ser os dois ao mesmo tempo”. Sininho não pode juntar dentro de si sentimentos contraditórios, ou ela é toda amor, ou toda ódio. Como
todas as fadas das histórias infantis. Como as crianças, mudam rapidamente de sentimento, mas não podem juntá-los dentro de si, sem a ajuda de uma mãe. Sininho representa uma parte de Peter Pan.
Depois de escutar a história de Cinderela contada por Wendy, Peter pode narrar a sua história. Isso o assusta, pois sua sombra cresce um pouco e ter sombra é partir da infância para a vida adulta, Peter perde a sua ao ouvir histórias. O menino narra aos outros que um dia saiu para explorar o mundo, acreditando que a janela permaneceria aberta para o seu retorno, mas ao voltar sua mãe havia colocado grades e um outro bebê no seu lugar. Peter, então, foi recolhido pelas fadas, que são todo amor ou todo ódio. Peter Pan ficou com raiva das mães que fecham as janelas, mas a senhora Darling deixou-a aberta e por isso Wendy, João e Miguel podiam voltar, não seriam obrigados ao exílio.
Na outra ponta da ilha, está ancorado o barco do Capitão Gancho. Outro que não pode crescer, ninguém lhe deu a mão e banhou-o em histórias. Não há mãe na história do Capitão Gancho, apenas um crocodilo que faz tique-e-taque, pois engoliu o tempo. O pirata com cara de mau, bandido, teve sua infância roubada, confinado a um internato em Londres. Sem pai nem mãe para darem falta da sua fuga da escola, Gancho foi parar na Terra do Nunca, o limite final para quem não consegue crescer. Mas adultos não podem entrar na Terra do Nunca e Gancho perdeu sua mão logo que chegou, agora o crocodilo quer o resto, pois o tempo engole quem não pode crescer.
Inimigos Peter e Gancho são muito semelhantes. A maior ofensa que Peter pode falar ao capitão é “bacalhau”. Mas a maior ofensa que pode fazer é permanecer criança, enquanto Gancho tem o corpo de adulto preso no mundo infantil. Bacalhau quer matar Peter Pan, mas Peter é “alegre, inocente e desalmado”, é a parte do adulto que necessita existir para transitar pelo mundo infantil.
Peter Pan e Capitão Gancho não podem crescer, não tiveram uma mãe para deixar a janela aberta, contar histórias e dar-lhes um beijo antes de dormir. João e Miguel podem levar para a Terra do Nunca seus objetos pessoais, brincar, se divertir e retornar a Londres para narrar suas aventuras aos pais. Wendy, já maior, pode guiar os meninos perdidos ao retorno ao lar. É o fio condutor, aquela que se espanta ao conhecer a história do Peter e rehistoriza a dos meninos perdidos. Ela pode guiá-los, pois mudará de quarto no dia seguinte, está na sua hora de crescer, mas ainda não cresceu. Wendy pode ser mãe e por isso não queima as pontes com a infância. Ela pode trazer os meninos de volta a Londres e pode enviar sua filha para Terra do Nunca quando o momento chegar, ela pode esperar com a janela aberta o retorno da filha e mais tarde da neta, pois sabe a importância de brincar de ser na Terra do Nunca.
Peter Pan não quer crescer, mas pode possibilitar que as outras crianças cresçam. Embarquem para um mundo “de gravatas e escritórios”, no qual ele só pode ver de longe. Ele nunca conhecerá o gosto daquela nova brincadeira, brincará para sempre entre fadas e sereias, ofendendo Capitão Gancho chamando-o de bacalhau e atirando-o para o crocodilo tique-e-taque.