Por Letícia Machado Moreira
Simbolizar é um dos pré-requisitos para brincar, sonhar, viver. Winnicott já nos falava em tempos antigos, o quanto era importante que a criança prendesse a simbolizar para entrar no espaço potencial, para poder criar. A criança aprende os primórdios da simbolização no seio da mãe. A mãe alimenta o bebê podendo criar com ele um elo de ligações onde aquele pequeno ser vai aprendendo a sonhar e a brincar, confiando no poder de ilusão e mais tarde desilusão de uma mãe suficientemente boa.
Contar histórias é de alguma forma poder perpetuar esse período de simbolização que a mãe instaura no bebê. Branca de Neve sabia disso quando sentou ao redor da lareira para contar histórias aos anões. Peter Pan também sabia quando foi a Londres buscar Wendy para dar os meninos perdidos uma mãe (“é aquela que conta histórias”). Bela sabia quando ia a biblioteca buscar livros para contar a ela mesma, para se transportar para lugares aonde haviam “castelos, duelos de espadas, feitiços e um príncipe encantado”. Aurora (Bela Adormecida) já sabia quando contou seus sonhos aos bichos da floresta e nos mostrou, ali, que podia sonhar. Poder sonhar, poder brincar, poder fazer de conta, entrar em mundos encantados, atravessar portais, chegar ao mundo da imaginação… são capacidades daqueles que tiveram uma mãe suficientemente boa para iludi-los e desiludi-los, para dar-lhe a mão e entrar no espaço potencial.
Keitniss (Saga Jogos Vorazes) não teve quem a guiasse até esse lugar
mágico da imaginação. Ela não podia sonhar, brincar de faz de conta, tinha que matar ou morrer, não suportava fingir matar ou morrer, a sociedade onde vivia exigia o sangue, o concreto, o não-lúdico, o ato. Ali, onde há o ato de matar, não há espaço para a simbolização, não há espaço para a troca de papel, para a criança que veste as roupas dos pais e finge ser grande. Keitniss termina seus dias encontrando a loucura, ela não pode simbolizar, ela não pode criar, não pode viver no vir a ser. Ainda assim, encontrar a loucura é a alternativa que o psiquismo da menina encontrou para dar conta da invasão que estava destruindo-o. Foi a forma encontrada para sobreviver.
Bella, (Saga Crepúsculo) deixa as coisas mais claras para nós, conta que nunca ouviu histórias quando criança, que não pode ser banhada pela magia, pelas histórias que nos constituem. Seus pais nunca acharam importante narrar a ela como era belo o mundo encantado. Bella teve de vivê-lo, concretamente, ficou presa entre vampiros e lobos, sem saber como encontrar a saída para voltar ao mundo real, nem sempre belo, mas também encantador.
Dumbledore (Harry Potter), um adulto que facilita a saída da adolescência, através de suas verdades parciais, deixa como herança a Hermione Granger um livro de histórias infantis. Hermione precisava dele, precisava sonhar, sair do seu lugar de suposto saber para sentir. O diretor deixa com ela um elo de ligação, a parte que faltava para que ela recuperasse a infância e pudesse ser adulta de verdade. Hermione, no início, não entende porque deveria aos 17 anos ler histórias infantis, Dumbledore não deixou pistas para esse mistério. Mas como tudo tem uma resposta, ela vai lendo e descobre o mistério final preso aos livros infantis. O contar e recontar a história permite que ela deixe a ciência comprovada de lado e escute o seu lado criança, escute a sua intuição, escute aquela menina pequena que quer brincar e que pode sonhar, a partir dali, simbolizando, Hermione segue rumo a adultez.
Winnicott, Dumbledore, Peter Pan, Branca de Neve… todos, já sabiam da importância de narrar histórias para se narrar. Sabiam da importância de brincar até cansar para se construir. E esse legado aprendemos com aqueles que fizeram. É por isso que acreditamos no grupo de contos, acreditamos na capacidade de simbolizar. Equações simbólicas nos levam a loucura como Keitniss chegou. Para viver é necessário ser e se é brincando, se é no lúdico, na capacidade de sonhar, na capacidade de imaginar.