Por Letícia Machado Moreira, Especialista em Psicologia Clínica, Sócia Efetiva do IEPP, Psicóloga Escolar e Mestranda em Educação PUCRS
E quando o Pequeno Príncipe termina é que se percebe que foram se percorridas pouco menos de cem páginas, mas com a intensidade de um milhão de páginas de lição.
Podemos falar de todas as brilhantes frases, dos mundos tão significativos que o nosso Pequeno Príncipe visita, descobre, explora e instiga pensamentos na gente. Podíamos percorrer todos esses mundos e ir discutindo sobre cada um deles, sobre o homem egoísta, o autoritário… mas vamos direto à mais clássica e importante Raposa das histórias.
A Raposa que pede para ser cativada e que nos mostra o quanto a amizade é importante para que alguém possa ser feliz. É o sentimento de amor que une quem é cativado, mas aqui, nesse mundo, o Pequeno Príncipe embora curioso, sente receio, será que vale a pena cativar a Raposa? E mais, será que vale a pena ser cativado? Pois, como lembra o nosso menino, quando nos permitimos cativar somos tomados por um sentimento único e grandioso, tudo nos lembra o outro. Uma música, o barulho dos passos, o trigo, o sol, a lua e a felicidade que acelera o coração quando o outro está se aproximando. E nesse momento o Príncipe cativa a Raposa, mas não pode deixar-se cativar por ela, pois já foi cativado pela sua Rosa que está esperando-o e sofrendo com o seu abandono. Cativar alguém é sim uma responsabilidade enorme, mas se deixar cativar também é uma responsabilidade, e mais que isso, é uma necessidade.
A Raposa nos lembra que só conhecemos de verdade quem cativamos, ou seja, relações superficiais não criam laços, não aquecem o coração. Tem que ser verdadeiro, tem que se tornar essencial, tem que sentir falta do outro, a falta na carne, a falta que corta, que faz doer, mas que alegra porque é uma dor feliz. Hoje, diz a Raposa, os homens não têm amigos, pois não se compra no Shopping Center junto com as roupas da moda, porque para ter amigos, para despertar o sentimento de amor no outro, é preciso paciência, já diria a Raposa. E paciência em um mundo veloz, de alta rotatividade, um mundo virtual, um mundo onde tudo tem que ser rápido, um mundo líquido, é luxo. Paciência nesse mundo tão escorregadio é artigo importado que não se vende no mercado e por isso não se tem, por isso não se desenvolve. E o que fazer se para cativar alguém a tecnologia não encontrou formas instantâneas? O que fazer se um clique ou dois não cativam uma pessoa? O que fazer com relações superficiais? Não temos tempo para conhecer o outro, para cativá-lo, para tolerar a diferença, tampouco para reconhecê-la.
As relações hoje são superficiais porque não temos tempo. Mas ninguém pergunta como fazer para ter tempo, é mais fácil não ter amigos, seguir no vazio, deixar o coração sangrando enrolado em um pano e seguir a rotina diária. O vazio que toma conta da humanidade é como o coelho de Alice, só sabe nos indicar que está atrasado. Mas atrasado para que senhor Coelho? Atrasado pra tomar chá às cinco com um Chapeleiro Maluco preso em rituais que não o deixam sentir? Atrasado para cortar cabeças com a Rainha? Atrasado pra quê?
Estamos atrasados, mas não é o mais novo modelo de celular, o mais fantástico computador que vai nos resgatar. Estamos atrasados, pois não estamos conseguindo enxergar o outro. Já diria a sábia Raposa que o “essencial é invisível aos olhos”, mas hoje, o essencial é invisível para a alma. Hoje, não nos permitimos sonhar, não nos permitimos contar, não nos permitimos sentir, porque não dá tempo. Porque temos que correr para levar as crianças ao colégio, correr para chegar ao trabalho, correr para ficar parado no engarrafamento durante horas.
As crianças chegaram na hora ao colégio, as roupas estão lavadas, os jogos organizados, os pais estão em seus trabalhos e na hora da janta a televisão informa as notícias diárias. Lá se vai mais um dia, mas ninguém se viu, ninguém se olhou no olho, ninguém sentiu o vazio do outro, pois o barulho da rua, o trânsito, a televisão, tudo preencheu o vazio que não sacia. Não há mundo da imaginação para nos refugiarmos ali dentro, porque para chegar até ele é necessário sonhar, narrar, é preciso ter tempo. E não temos tempo. Temos que postar no facebook as aventuras das quais não participamos porque não tínhamos tempo para vivê-las e postá-las, então optamos por postar fotos de lugares que não fomos, de coisas que não fizemos, de pessoas que não seremos.
O aviador, narrador da história, começa nos contando que, quando pequeno, desenhava jibóias que comiam elefantes, mas os adultos viam um chapéu. Decepcionado, ele largou a carreira de pintor aos seis anos de idade e foi dedicar-se a matérias frias, mas reconhecidas. Quando o Pequeno Príncipe pede um carneiro, nosso amigo não pode desenhar, porque foi inibido de sonhar, de se permitir quando criança e agora está preso em um mundo adulto. Para não cair em tentação, nosso amigo queimou as pontes com a infância e seguiu, vazio, sem tempo, sem sonhos, sem histórias rumo à idade adulta. Nosso amigo não pode desenvolver seu pensamento, atrofiou; porque os adultos não aceitavam idéias diferentes, idéias que fazem pensar. Porque pensar exige tempo. E tempo é artigo raro no mundo de hoje.
Está faltando tempo, e segundo a Raposa, é justamente “o tempo que dedicaste a tua Rosa que fez dela tão importante”, mas se faltou tempo para dedicarmos, não há rosa importante para admirarmos.