Quando em meados da década de 40 a história de Bambi foi criada a grande conflitiva girava em torno da morte da mãe de Bambi no momento em que o filhote precisava de carinho, cuidado e proteção. É naquele momento que ele aprende o significado da palavra “homem”, algo até então abstrato, confuso, que ele só sabia que tinha que fugir. É na hora da morte da mãe que surge o pai, nesse momento ele descobre ser filho do cervo chefe. O filme original Bambi I, deixa em aberto o final da infância de Bambi e nos devolve-o na cena seguinte entrando na adolescência, no momento em que Bambi está balançando uma árvore com sua nova galhada.
Reencontramos Bambi na puberdade e ao lado de Tambor e Flor, Bambi indaga ao Corujão o que é estar apaixonado. Dali segue uma história rápida onde cada um dos amigos encontra o seu amor, vê a floresta ser dizimada pelo fogo, retorna ao seu habitat natural depois do caos e por fim, Bambi e Faline têm um casal de filhos, dando a entender de que o ciclo da vida continua quando a floresta está restabelecida.
A história de Bambi nos mostra um filhote de cervo que nasce sendo considerado o Príncipe da Floresta. Tambor, o coelho e melhor amigo de Bambi, logo se encarrega de mostrar ao “Príncipe” todo o seu reino e vemos logo no começo Bambi sem conseguir ficar em pé, depois aprendendo as palavras e por fim, Tambor, lhe mostra o que são as estações do ano. Mas é a
mãe de Bambi quem lhe mostra o que é a campina e como ele deve se proteger do bicho homem que quer matá-lo.
Bambi está crescendo e aprende rápido as coisas do seu mundo. É a mamãe Coelho, mãe do amigo Tambor, quem introduz na história a palavra pai. Ao ver Tambor fazendo alguma coisa errada, a mamãe Coelho logo questiona o filho “Tambor, o que seu pai disse sobre isso?” E Tambor não só repete a frase ritmada do pai, como também se envergonha das suas atitudes.
Pronto, sabemos agora que o pai é a lei.
É um filme de 1942, devemos levar em conta que historicamente quem cuidava das crianças eram as mães, enquanto o pai estava ausente provendo o sustento da família e, no caso dos animais, zelando a família para que o bicho homem não os encontrassem.
Só que a corsa, mãe de Bambi, acaba morrendo durante uma ida a campina para buscar alimento. Quando saem da proteção da floresta, Bambi e sua mãe são perseguidos e esta acaba por morrer. Bambi ao ver que a mãe não retornou para casa sai desesperado buscando encontrá-la e é nesse momento que surge a figura do pai. O mesmo pai orgulhoso que vemos admirando Bambi à distância logo que este nasce, o mesmo pai valente que comanda os demais veados, é esse pai “Príncipe” que surge no momento de desespero e abandono do filho. E ali ele se apresenta e diz “Vem filho, vamos para casa”. Bambi não questiona, talvez estivesse muito desamparado, mas o mais provável é que ele sempre soubera que seu pai era o Grande Príncipe e ponto. O pai é aquele que aparece na hora em que o filho precisa de proteção, é aquele que estava lá, distante, no alto da colina, a observar os passos do filho e da esposa e, na necessidade, se fez presente e socorreu o filho.
Contudo, a virada do século, trouxe à tona alguns papeis diferentes do início do século XX. O papel do homem não era mais de único provedor e a mulher tampouco cuida, apenas, dos filhos. Hoje, a mulher estuda, trabalha e muitas vezes é a fonte principal de sustento do lar, e, em contrapartida, o homem passou a cuidar e envolver-se no dia-a-dia das crianças. Visando essas mudanças surgiu à necessidade de explorar essa lacuna do filme original de Bambi, o que aconteceu nesse período da infância onde a mãe não mais podia estar presente? O que aconteceu no momento em que o Príncipe da Floresta teve que assumir a educação do jovem Príncipe? Como se deu a relação entre pai e filho?
Sendo assim, surge no ano de 2006 Bambi II, que nos conta a história da lacuna. Nos conta o que aconteceu nesse período entre o final da infância e o início da adolescência aonde pai e filho tiveram que se encontrar. Bambi II nos mostra um filho clamando pelo amor do pai, pelo reconhecimento do pai. Bambi faz de tudo para que o pai, Príncipe, tenha orgulho dele. Por outro lado, o pai sente-se vulnerável. Ele que comanda uma floresta não sabe o que fazer com o filho, tem que ensinar os mistérios da vida, tem que cuidá-lo e não sabe o que fazer com a pose de Majestade. O que faz o grande comandante do exercito quando chega em casa e a sua ordem não é cumprida? E se seu povo descobrir? O pai de Bambi vive esse dilema. Seu primeiro impulso, na primeira noite em que tem de cuidar do filho, é falar a verdade, dizer que a mãe não mais retornará e ficar na porta da “casa” cuidando enquanto Bambi dorme. No dia seguinte ele pede que o Corujão arrume uma corsa que possa cuidar de Bambi.
Sabiamente, o Corujão demora alguns dias para conseguir cumprir tal tarefa. Tempo necessário para o pai apresentar a floresta na sua visão, mostrar o bicho homem, contar qual é o perigo de se aproximar do acampamento, mostrar como se sente através da terra o perigo se aproximar, e, principalmente, aprender a conviver com Bambi. Nesse período o pai descobre que o filho ainda não sabe subir nas ladeiras, ainda não consegue acompanhar seus passos, descobre que o filho precisa brincar com os amigos e ser criança por alguns momentos, descobre que o filho tem sentimentos. E como todo pai moderno, ao cuidar da casa, do filho e ainda seguir firme no trabalho, o pai de Bambi vai ficando mais brincalhão e emotivo, e quando chega à hora de se separar de Bambi ele segue o filho e a “nova” mãe zelando pela proteção de Bambi.
Nesse momento acontece uma armadilha do homem e Bambi demonstra toda a sua coragem, o pai acaba por impedi-lo de ir com a Corsa, Bambi acha que é por orgulho, mas é por amor que vemos o pai assumir seu papel de cuidador e ficar com o filho até o final.
Outro papel importante é o da mulher, embora a mamãe Coelho demonstre que continua igual, ela não está mais presente o dia todo na educação de seus filhos, ela pede, várias vezes, que Tambor cuide das irmãs menores, o que pode significar que ela está ocupada cuidando de outras coisas, como um trabalho. A Faline dos anos 2000 e as irmãs do Tambor, também, são mulheres muito mais ativas que participam da história. Se em 1942 víamos a fêmea, apenas, como a que propõe o jogo da sedução, hoje, as coelhinhas interrompem o irmão, vão atrás de Tambor, marcam presença, se fazem presente. Faline vai atrás de Bambi, toma partido na rivalidade dele com outro filhote de veado, acompanha-o lado a lado e não fica, apenas, recebendo as ordens de Bambi, mas enfrenta as batalhas com ele. Vemos uma mudança de postura feminina, as mulheres hoje, estão ativas, estão trabalhando, estão lutando por ter direitos iguais e as fêmeas da historinha não ficam para trás.
Enquanto a mulher passa de um papel passivo para um papel ativo perante a sociedade o homem tem que fazer o mesmo perante os filhos, a casa, a família. São papeis que se moldam para acompanhar a evolução dos tempos.
Se em 1942 a história da morte precoce da mãe deixava uma lacuna não preenchida na vida de Bambi, 64 anos depois é possível preencher esse espaço com um pai presente e humano. Um pai que demonstra sua fragilidade, mas que acaba conseguindo superá-la por amor ao filho, assim como a mãe fazia anos atrás. A entrada no século XXI pediu reformulações na história, pois o pai já não era mais distante, suas regras já não são mais como as que Tambor repetia pelos cantos, são demonstradas como fez o pai de Bambi, são sentidas e são seguidas pelo filho através do amor e não só do respeito.
A mudança de postura do pai frente à sociedade fez com que um clássico da Disney tivesse que ser aprimorado, reeditado como o papel do homem foi frente aos filhos e a mulher. E depois de reeditarmos esse papel é possível seguir a história de onde paramos, é possível ver Bambi se apaixonar pela amiga de infância e ter seus filhos.
Letícia Machado Moreira
Especialista em Psicologia Clínica, Mestranda em Educação, Psicóloga Escolar, Psicóloga de Grupoterapia Mediada por Contos.